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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Aspas simples

Eliane F.C.Lima

Uma pipa é um ser,
extensão de braço,
extensão de mão,
olhos, boca aberta,
sua atenção;
voando no ar,
gestos quebradiços,
se ela vai ou volta.

Uma pipa é um ser,
cabeça e cauda rota,
um balé gracioso,
vírgula ao vento,
peixe fino e aéreo,
agulha de papel
costurando o ar.

Corrente

Eliane F.C.Lima

O rio da vida.
Ora caudaloso,
ora fio d’água;
embalo de berço,
ora suas pedras,
pouso de sereia,
ou dente de cão.
A vida é um rio.
Suas correntezas,
árvore arrancada,
sua erosão.
Seus rodamoinhos,
bicho carregado,
galho em rodopio,
suas corredeiras,
tombo, queda-d’água.
O rio da vida,
seu prazo é o mar.

domingo, 11 de outubro de 2009

Momento certo

Eliane F.C.Lima

Dê um abraço por mim
e dê um beijo por mim.
Existe uma hora certa.
A minha hora eu perdi.
E não a perca por mim.

Existe um ponto exato
que deve ser o começo,
mas pode também ser fim.
Existe um ponto exato,
o ponto em que me perdi.
E não o perca por mim.

Existe a vida exata,
que nunca é não, é só sim.
A minha vida eu perdi,
não perca a sua por mim.
Dê um abraço por mim
e dê um beijo por mim.
E viva a vida por mim.

A lavadeira

Eliane F.C.Lima

A lavadeira da bica não entende de modas.
Usa saia estampada e blusa estampada.
Usa saia amarela com blusa roxa.

A lavadeira da bica não vê o bom gosto da patroa.
Roupa dela: dinheiro da comida;
sua roupa: cobertura do pobre corpo pobre.

A lavadeira da bica:
sabe o preço da roupa a lavar pela recomendação da patroa.

Reflexos

Eliane F.C.Lima

Este espelho me olha assombrado
e desconhece seu rosto refletido;
não sabe de quem é o riso gelado,
não consegue ver bem o olhar sumido.

Espelho, espelho meu, que ora duplico,
espelho, espelho meu, eu lhe suplico,
não fuja, estupefato, do semblante
que é meu, posto que é seu, por semelhante.

Encare a boca, aflita, também sua,
tal qual a dor perene e crua,
e a lágrima que a sua face molha.

Se hoje sou só eu que não sorrio,
se nesses dias sou a que não olha,
também há no espelho o que é sombrio.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Paz

Eliane F.C.Lima

É retomar o fio perdido da alma
e enovelá-la, aos poucos, caprichosamente,
até torná-la macia, acariciável.
É saber de onde se começa e para onde se vai
e, em círculos,
voltar sempre ao mesmo lugar.
É estar fora, firme e no caminho.
É estar dentro, quente, amorável,
envolver, sendo envolvida.
Como abraçar a mim mesma,
devolver-me o calor de meus braços,
novelo e mãos, mãos e novelo.
É como um cão enrodilhado,
sonhando felicidades pequeninas,
quase sorrindo,
de alma apaziguada, sem conflitos,
nem tentativas,
a não ser a de dormir aquecido sobre si.

A sereia

Eliane F.C.Lima

A sexta-feira acontece:
há uma vaga felicidade,
uma indefinida promessa de não-sei-quê.
Cada minuto é como uma porta aberta para um mundo
[ansioso,

para um fundo fugidio e convidativamente sensual.
A sexta-feira é o sonho, a esperança, o começo.
A sexta-feira, desde a quarta-feira,
requebra, chama, pisca e se encolhe.
A sexta-feira é sereia e ninguém resiste a ela.
Mas a sexta-feira finge que é tímida
e, quase sempre, não se dá.
Finda o domingo e nada acontece.
Agora vamos passar a segunda e a terça odiando a
[sexta-feira,

até que ela acene com seu faiscante vestido de festa
ou desabotoe, parcialmente, sua langerie.

Drama

Eliane F.C.Lima

Vi caras sentadas
de bocas tristonhas,

olhares gementes
de almas caladas
e línguas dementes.
Vi olhos que gritam,
vi olhos que fitam
sem ver, nem querer.
Vi homens, mulheres,
sob cujas peles,
o sangue se esvai:
sem boca, sem ai.
Vi corpos sem alma,
pessoas sem calma,
e sem coração,
silêncio profundo,
seres de outro mundo,
grades de prisão.
Vi caras sentadas,
vi pés sem estradas,
morte...solidão.
Vi sinos e sinas,
torres em ruínas,
rastro de correntes,
as dores de Jó.
Vi bicho, vi gente,
vi pêndulo e pó.

Fá-lo-ei, o homem

Eliane F.C.Lima

Falo hei,
para apontar as profundezas da feminilidade,
aberta e sugativa!
Falo há,
só como espada,
para derrubar as muralhas do preconceito
onde se erguem mulheres.
Falo sim, falo alto,
porque vaginas são como bocas mágicas:
comem falsos deuses e devolvem homens.

sábado, 3 de outubro de 2009

Infinir

Eliane F.C.Lima

Caixa de surpresas é a vida.
Acontece dentro do planejado:
surpresas.
Termina dentro do imprevisível:
a morte.
Caixa de madeira é a morte.

Último ato

Eliane F.C.Lima

A morte é o término do espetáculo:
cadeiras vazias, palco vazio, escuridão e silêncio.
A morte é um fim de festa:
a agitação se foi;
só resta o resto a recolher.

A viagem

Eliane F.C.Lima

É para fazer uma viagem
que embarco no teu navio,
com calmaria ou tempestade.
A luz do teu corpo guia meu destino
e não sei se é prazer ou se corro perigo.

É para fazer um destino
que embarco na tua tempestade,
com luz ou com perigo.
A calmaria do teu navio guia meu prazer
e não sei se é corpo ou viagem.


É para ter um prazer
que embarco na tua luz,
com um navio ou com teu corpo.
O perigo da tua viagem guia minha calmaria
e não sei se é tempestade ou destino.

Sem roteiro

Eliane F.C.Lima

Descendo por suas costas
minha mão desliza,
cobra vertiginosa.
Sub-reptícia, a sibilina se insinua.
Vício e volúpia, volta e virada.
Procura cantos e desvios,
vagos e vagas, montanhas.
Minha mão na sua nuca,
adivinha o arrepio,
sente do peito o cio.
Tatuagem deslizante,
mordidas ofídicas nas pontas dos picos.
A serpente de meu braço,
descendo sobre seu ventre,
se enrosca no entre
de suas coxas.
Abraço que só se abrasa
em úmidas, paragens toscas,
por dentro de grutas e roscas,
timidamente, se esconde,
gulosa, no centro do onde.