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domingo, 27 de setembro de 2009

Indivíduo

Eliane F.C.Lima

O desejo aquece pensamentos
e choca ações.
O desejo ferve e entorna,
mas aviva o fogo.
O desejo é febre,
dá febre,
e há convulsões.
O desejo convulsiona o caráter
e desvia o comportamento.
O desejo faz e desfaz,
manda e desmanda,
é tirano, é bandido,
é dócil, é doce.
O desejo é o indivíduo
e faz multidões
e perpetua a espécie.
O desejo é uma espécie
de fogo,
de febre,
de doce,
de tirano,
de ação,
de pensamento,
de multidão.

A materna noite

Eliane F.C.Lima

Que a noite sempre venha e caia em volta de mim como um
[útero.
Que seja de mãe a penumbra que fecha meus olhos;
que seja de mulher a mão noturna que afaga meus cabelos,
que apazigua minhas dúvidas,
que entorpece meus conflitos.
É bom que a noite sempre vença o dia, todo dia: todo noite.

Indo

Eliane F.C.Lima

Viajo sozinha.
Deixei a mala.
Sem lembrança do que ficou.
Nem o cheiro do passado.
Não olho para trás.
Nem observo a paisagem.
Não ouço o canto dos pássaros,
não vejo o verde,
nada de fotografias.
Sem álbum de viagem.
Não fruo o vento.
Nem sei se há vento.
Mas piso a rudeza do chão
e as duras pedras
que não sei quem atira.
Fechei a porta da estrada:
não quero que ninguém me acompanhe.
Tampouco sigo pegadas.
Não tracei um percurso.
Não procuro atalhos.
Não planejo aonde chegar.
Mas há um caminho
que eu caminho,
querendo que não seja longo.

Procurando alguém

Eliane F.C.Lima

À minha amiga e poeta Marise Ribeiro

Andei na vida procurando coisas:
tinha certezas e muito esplendor.
Andei na vida procurando tudo,
achei pouca alegria, muita dor.

A cada fase, uma busca nova,
a cada curva, um encontro inusitado,
achando aquilo que não procurei,
esfacelada pelo encontrado.

Hoje só busco a mim: quero me achar.
A vida me perdeu a cada esquina.
Busco, ao menos, do antigo olhar,
a esperança confiante da menina.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Poema aos simples

Eliane F.C.Lima

Quero a simplicidade dos poucos pensamentos de uma
[pessoa ignorante;
a simplicidade da roupa preta debruada de branco;
a simplicidade do chinelo, do banho de rio...
e dos urubus dando voltas no azul.
Quero a simplicidade desses mesmos urubus,
pousados, espiando a chuva dos beirais dos telhados.

Para quem vai chegar

Eliane F.C.Lima

Vejo-me na roseira:
tenta olhar
por sobre o muro;
quer ver, aflita,
você chegar.
Em verde esforço,
crescendo em tronco,
espinho e folhas,
sorvendo o sol,
sugando a terra,
bebendo a chuva,
vai para o alto,
o duro muro.
Em firme posto,
mirar a rua,
o seu caminho,
seu doce passo,
seu doce rosto,
seu acenar.
Enquanto sobe,
saudosa chora,
rosas lilases,
que, contumazes,
vão perfumar.
Triste sou eu:
não sei chorar.

A sereia e o mar

Eliane F.C.Lima

Esse amor chegou, aos poucos, devagar,
chegou como chega um manso mar
até a areia.

Meu coração distraído, sem sabê-lo,
quedou-se ali, penteando o cabelo,
qual sereia.

E a maré, docemente, foi subindo.
Meu coração, orgulhoso, sucumbindo
à maré cheia.

Quando viu era céu, mar, amor.
E batia, afogado, sem ter dor,
em água alheia.

Dentro do túnel

Eliane F.C.Lima

Onde será que eles vão com tanta pressa?
O que será que buscam?
O fim do mundo?
Ou o princípio?
Onde será que eles vão com tanta pressa?
Que sinais indicam sua rota?
Que motivos impulsionam sua partida?
Que arcanjos esperarão sua chegada?
Será mandado de Deus?
Ou lei dos homens?
Será medo ou coragem?
Busca ou fuga?
Haverá um ponto de chegada?
Ou o importante é só ir?
Onde será que eles vão com tanta pressa?

Ser

Eliane F.C.Lima

Cada pessoa é uma pegada na areia:
a onda apaga.

Uma pessoa é só espuma na areia:
o vento seca.

Uma pessoa é resto de mar na areia:
a areia bebe.

Uma pessoa é onda que vem para a areia,
que vai, não volta.

Soneto aos cinquenta anos

Eliane F.C.Lima

Vejo marcada, assim, em minha face,
a frágil flor da perigosa vida,
que é jardim onde se criam flores
que germinam, vivendo de ferida.

Cada ruga que marca minha pele
é um caminho vago e sem saída
das emboscadas lábeis dessa lida,
das armadilhas dúbias dessa sorte.

Nunca percebo um rosto de pessoa,
mas um tempo, banido, que escoa,
entre sonho e guerra, ponte ou corte.

Vejo impresso, assim, em meu destino,
um rosto que reflete o desatino
de lutar, dia a dia, até a morte.

Uma história medieval

Eliane F.C.Lima

Dedicado à Amélia de Oliveira (vá a meu blog Literatura em vida 2, no item Literatura de ontem 2, clicando aqui) e a todas as Amélias, o que parece não ser um nome, mas um destino.

Se há anjos, também há dragões,
que vomitam fogo
e parecem consumir o mundo.
Dragões sempre ameaçam cidades.
Mas, também, sempre há um herói
que quer salvar uma donzela solitária.
E uma cabeça carregada, pelos cabelos,
entre os gritos do povo.
O herói procura por florestas inóspitas
e segue o rumor dos urros quentes.
Mas é minha donzela, finalmente,
quem vence os anjos
e passa com a cabeça do herói,
triunfantemente sozinha,
entre as labaredas aconchegantes de seus dragões.

Só amor

Eliane F.C.Lima

Sou uma flor quase branca
e macia, incrivelmente macia
e delicada,
que tem uma vertigem
ao imaginar o contato,
em suas pétalas,
da primeira gota de orvalho.
Uma flor que fugiu do lilás
e foge do sol,
que ama a sombra
e a noite só de sombras;
que deixa a tal gota de orvalho
a primeira -
ou, às vezes, a última - escorrer
para prolongar o prazer,
vagarosamente, em sua intimidade,
acariciando sua inefável,
intocável película.
Uma flor não amarela,
não branca,
mas suave e delicada,
que imagina que a gota de orvalho
é outra flor,
e é fria,
e o escorrer é carinho
dessa flor apaixonada,
dessa flor que escorre
e volta sempre,
ainda mais delicada
- se é possível -
e transparente,
que fugiu, definitivamente, do branco,
[do amarelo, do lilás, de qualquer cor.
A cada início de noite,
desse modo,
tem um estremecer,
ao imaginar
que é flor o que é líquido,
que é amor
o que é amor.

O barco










Eliane F.C.Lima

Naquela ilha, batem marés de felicidade.
Naquela ilha, rolam as espumas da calma.
Naquela ilha, as aves da tranquilidade sobrevoam...
e pousam.
É naquela ilha que crescem as verdes árvores do silêncio.
Naquela ilha, o sol não fere, cai como uma névoa,
não tem pontas a sua luz, só ressalta as formas da paz.
Aquela ilha não tem praias e é cercada de pedras,
qualquer um não chega lá.
Aquela ilha fica longe e eu estou aqui.
Não sou maré, não sou espuma, nem ave.
Devo descobrir um meio para me aproximar
e plantar minhas sementes.
Mas só eu sei
que o melhor daquela ilha é olhar...
silenciosamente...
e ter um sonho verde de chegar lá.

Esse útero

Eliane F.C.Lima

Navega no espaço, solta e silenciosa,
como um seio-esfera,
como totalidade,
a mãe.
Fechada sobre si,
fechada sobre mim,
abraça a cria: mãe.
Abre seu ventre
e me dá ao universo,
no meio da noite.
Olhos de água,
corpo de terra,
hálito de vento,
mãos de árvores que me acenam,
na tempestade.
Amamenta-me com seus rios, cascatas, sua chuva.
Deusa-Terra, mãe Gaia,
que me guarda,
que me receberá
novamente e para sempre,
filha de sua mãe,
em seu rotundo ventre.

Natal

Eliane F.C.Lima

Terrível é passar o último Natal
com alguém amado
e que se vai perder,
na inconsciência desse fato.
É não aproveitar cada olhar,
cada palavra alegre,
cada brinde,
e no abraço, na ceia,
não estreitar, profundamente,
para guardar para sempre.

Terrível é tentar reviver,
depois, com desespero,
o que disse, o que riu, o que calou.

Terrível é não ter deixado,
ao menos, dessa vez,
todas as palavras doces
e eternamente guardadas,
aquela emoção verdadeira
e eternamente adiada,
o grande amor
eternamente contido
transbordarem por inteiro.

Consolo é passar o último Natal
consigo mesma,
na piedosa ignorância dos que irão.

Viver

Eliane F.C.Lima

Esse pendular perdura,
preso, preto, persistente.
E pendura em suspense,
para sempre em meu peito,
esse pleno pavor.
Vagabunda vida vígil,
vivo vendo
suas vagas vinganças.
Vive vindo,
em suas vielas vis,
o seu veneno,
esse louco valor.

domingo, 20 de setembro de 2009

O eterno inverno











Eliane F.C.Lima

Aos parnasianos

Bem-vindo o certo e necessário inverno,
que leva embora as folhas amarelas,
livrando a amendoeira do inferno
de arrastar o velho e gasto junto a elas.

Logo a nova estação é nova vida:
de um tempo infeliz vai-se a lembrança,
remoça o tronco, que já não se cansa,
se o verde traz a condição perdida.

Meu corpo tão usado e desigual,
mantém eternamente o antigo mal,
que soma peso ao mal de novas eras.

Meus doidos sofrimentos não se vão,
não vêm novos sonhos com a estação
eu eu sempre temos outras primaveras.

Filosofia pétrea

Eliane F.C.Lima

Perfeita concretização da estática,
uma pedra é um universo fechado sobre si:
nada ao exterior,
sólido egoísmo,
introversão congelada.
Uma pedra é a substancialização do hermético,
em seu sono hibernal.
Pura discrição,
nada ouve, nada vê, nada fala,
uroboros petrificado.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Vegetar

Eliane F.C.Lima

Assemelhar-se à planta:
nenhum gesto de ânsia,
nenhum objetivo formal,
só reserva e silêncio,
completa dissimulação.
Sem esgar de decepção,
dá a volta, se não pode a reta,
imperceptivelmente.
Sem orgulho ou comemoração,
excede limites,
conquista o alto,
atinge o profundo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

E gira

Um mundo fechado de perfume e seda,
um mundo aberto de miséria e morte.
Um ronco histérico de motor de carro,
um urro histérico de boca de homem.
Uma criança que vomita de fome,
uma mulher que vomita o whisky.
Um urubu comendo um boi morto,
um pássaro azul numa gaiola de ouro.
Uma taça de champanhe contra a luz de candelabros,
uma taça de vinho contra a luz do altar.
Um verme sobre um cadáver podre,
uma serpente verde no corpo nu de mulher de circo.
Um pé que samba,
um pé que esfacela.
Uma mão que apalpa,
uma boca que ri,
um olho que chora.
Um olho cor de mel,
um olho azul,
um olho castanho,
um olho verde,
um olho negro,
uma negra cavidade sem olho.
Um estalar de fogos de artifício,
um retumbar de bombas.
Uns ombros que sacodem ao som de rumba,
uns ombros que sacodem ao som de rock,
uns ombros que sacodem ao impacto de balas.
Um homem e uma mulher.
Uma mulher e uma mulher.
Um homem e um homem.
Uma criança que brinca,
uma criança que não nasce,
uma criança para sempre criança.

sábado, 12 de setembro de 2009

Da lagarta e do casulo

Eliane F.C.Lima

Gesto dentro de mim uma lagarta prateada
que tormentosa não se quer dar ao mundo.
Da borboleta despreza o colorido profano.
É o sozinho seu campo de batalha,
a escuridão seus ataques contínuos,
o recuar o seu golpe fatal.
E se enrosca... e luta,
e se introverte... e lança.

Natureza

Eliane F.C.Lima

E assim é o mamoeiro que cresce:
não tem moral, nem ética, nem caridade.
Seu único compromisso é a vida,
é subir, é furar o ar, é molhar-se de chuva.
Silencioso e verde, escolhe o melhor.
Alonga-se para os lados,
preguiçosamente,
abrindo braços e mãos.
E parte para o céu
- guarda-sol natural -,
buscando o azul.
Não agradece à terra,
não divide com companheiros,
não saúda aves.
Permanece ontologicamente bom,
por estar vivo e só.


Este poema foi escrito em Praia Linda, bairro de São Pedro da Aldeia, Região dos Lagos, Rio de Janeiro, meu paraíso, onde escondo, egoisticamente, minha felicidade. Numa certa época, plantei ali mamoeiros. Observava-os, a cada vez que ia ali. Não colhi quase mamão nenhum, mas, para me compensar, me proporcionaram uma lição profunda de natureza, não só no sentido ecológico, tão na moda, mas no que lhe dá a filosofia, segundo o Aurélio: "Essência".






Insólito

Para Adriana Calcanhoto

Eliane F.C.Lima

Dentro deste prato inexorável,
fios de macarrão me olham indiferentes.
Enrosco os fios ritualisticamente
e a comida me incomoda, pedras no sapato.
Não sei se como ou se mastigo mágoas,
não sei se como ou se abro ferida.
Fios de macarrão são como larvas,
caem do coração, devoram a vida.
Dilacero meu ser dilacerado entre os dentes,
fios de macarrão, dores pendentes.
Misturo os gemidos com o molho rubro,
sangro e queijo.
Meu estômago agora repleto de sofrimento.
Olho o macarrão e ele chora... lamento!
Poucos fios de mim dispersos sobre o prato.